A Eucaristia na vida do sacerdote -Parte II

Dom Fernando Guimarães - Bispo Diocesano de Garanhuns
1. SACERDÓCIO E EUCARISTIA:
MISTÉRIO DA PRESENÇA REAL DE CRISTO
O Catecismo da Igreja Católica (CIC, nn. 1536-1600) nos apresenta um excelente resumo da doutrina e da mais pura tradição da Igreja a propósito do Sacerdócio ministerial. Permitam-me recordá-lo:
“A Ordem é o sacramento graças ao qual a missão confiada por Cristo a seus Apóstolos continua sendo exercida na Igreja até o fim dos tempos; é portanto o sacramento do ministério apostólico. Comporta três graus: o episcopado, o presbiterado e o diaconado”.[2]
Este sacramento é destinado ao serviço da Igreja e tem sua identidade própria e característica:“No serviço eclesial do ministro ordenado, é o próprio Cristo que está presente à sua Igreja enquanto Cabeça de se Corpo, Pastor de seu rebanho, Sumo Sacerdote do sacrifício redentor, Mestre da Verdade. A Igreja o expressa dizendo que o sacerdote, em virtude do sacramento da Ordem, age ‘in persona Christi Capitis” (na pessoa de Cristo Cabeça)” [3] E o Catecismo prossegue, citando o Concílio Ecumênico Vaticano II: “Pelo ministério ordenado, especialmente dos Bispos e dos presbíteros, a presença de Cristo como chefe da Igreja se torna visível no meio da comunidade dos fiéis (cf. LG 21). Segundo a bela expressão de Sto. Inácio de Antioquia, o Bispo é ‘typos tou Patros’,como que a imagem viva de Deus Pai”. [4]

Eis que reaparece o laço essencial e intrínseco entre o Sacerdócio ministerial e a Eucaristia, que reproduz, por assim dizer, o mesmo liame existente entre Cristo e o Sacramento de seu Corpo e de seu Sangue. É o que nos recorda o Catecismo da Igreja Católica, quando afirma: “O Sacrifício redentor de Cristo é único, realizado uma vez por todas. Não obstante, tornou-se presente no sacrifício eucarístico da Igreja. O mesmo acontece com o único sacerdócio de Cristo tornou-se presente pelo sacerdócio ministerial, sem diminuir em nada a unicidade do sacerdócio de Cristo: ‘Por isso, somente Cristo é o verdadeiro sacerdote; os outros são seus ministros’”. [5]
O Sacerdócio nasceu juntamente com a instituição da Eucaristia e ligado a ela. Não é por acaso que as palavras “fazei isto para em memória de mim”, são pronunciadas por Jesus imediatamente após as palavras da consagração eucarística. [6]
Através da ordenação sacerdotal, o Padre é ligado à Eucaristia de uma maneira toda especial e excepcional. Podemos dizer que os Sacerdotes existem pela e para a Eucaristia: de certo modo, nós somos responsáveis pela Eucaristia. É interessante relembrar aqui como Santo Tomás de Aquino, nas suas reflexões sobre o sacramento da Ordem, considera-o sempre em uma perspectiva eucarística: é o poder espiritual que diz respeito à Eucaristia e seu caráter sacramental consiste exatamente no poder sobre o corpo de Cristo. [7]
Uma segunda consequência nos vem desta reflexão, a propósito da relação entre Padres e fiéis. Trata-se da questão sempre atual da relação entre o Sacerdócio ministerial e aquele que o Concílio Vaticano II chama de “sacerdócio comum dos fiéis”.
O Catecismo da Igreja Católica explica-o assim: “Toda a comunidade dos fiéis é, como tal, sacerdotal. Os fiéis exercem seu sacerdócio batismal através de sua participação, cada qual segundo sua própria vocação, na missão de Cristo, Sacerdote, Profeta e Rei. É pelos sacramentos do Batismo e da Confirmação que os fiéis são ‘consagrados para ser … um sacerdócio santo’”. [8] Nesta definição, encontramos os elementos para estabelecer a relação Padre – Fiel: “Enquanto o sacerdócio comum dos fiéis se realiza no desenvolvimento da graça batismal, vida de fé, de esperança e de caridade, vida segundo o Espírito, o sacerdócio ministerial está a serviço do sacerdócio comum, refere-se ao desenvolvimento da graça batismal de todos os cristãos. É um dosmeios pelos quais Cristo não cessa de construir e de conduzir sua Igreja. Por isso, é transmitido por um sacramento próprio, o sacramento da Ordem”. [9]
Temos, portanto, uma conjunção harmoniosa: como batizados, somos todos chamados à santidade, [10] a viver segundo o Espírito, a nos deixar transformar pela obra santificadora do amor. Não nos esqueçamos que as pessoas ordenadas são, antes de tudo, cristãos batizados que recebem, em seguida, uma ordem sacramental e uma configuração especial, que os põe a serviço da santificação mesma da comunidade dos batizados da qual eles próprios fazem parte:“Quanto a nós, a quem o Senhor, por sua benevolência e não por mérito nosso, estabeleceu neste cargo de que teremos difíceis contas a dar, devemos distinguir bem duas coisas: a primeira, somos cristãos, a segunda, somos bispos. Somos cristãos para nosso proveito; e somos bispos para vós. Como cristãos, atendemos ao proveito nosso; como bispos, somente ao vosso”. [11]
A graça sacramental específica da Ordem configura ontologicamente a pessoa do ministro ao Cristo Sacerdote, Mestre e Pastor, [12] “para servir de instrumento de Cristo à sua Igreja. Pela ordenação, a pessoa se habilita a agir como representante de Cristo, Cabeça da Igreja, em sua tríplice função de sacerdote, profeta e rei”. [13] Trata-se de um caráter espiritual indelével, que acompanhará por toda a eternidade a pessoa do ordenado, e o que habilita a agir “in persona Christi Capitis”, para a realização das três funções de ensinar, santificar e de governar a Igreja de Cristo. Mas esta graça não elimina sua fraqueza humana, sua possibilidade de erro, como não elimina seus eventuais pecados. [14]
A eficácia de suas ações sacramentais, porém, é garantida pelo fato de que ela não depende da santidade pessoal do sacerdote, mas se realiza ex opere operato, ou seja, ela é obra do próprio Cristo, que ele representa. Mas não se pode deixar de reconhecer que “enquanto nos sacramentos esta garantia é assegurada, de tal forma que mesmo o pecado do ministro não possa impedir o fruto da graça, há muitos outros atos em que a conduta humana do ministro deixa traços que nem sempre são sinal de fidelidade ao Evangelho e que podem, por conseguinte, prejudicar a fecundidade apostólica da Igreja”. [15] É o sentimento constante da Igreja, reafirmado no ensinamento do Concílio Ecumênico Vaticano II: “ainda que pela misericórdia de Deus a obra da salvação possa ser realizada por ministros indignos, todavia, por lei ordinária, prefere Deus manifestar as suas maravilhas por aqueles que, dóceis ao impulso e direção do Espírito Santo, pela sua íntima união com Cristo e santidade de vida, podem dizer com o Apóstolo: ‘já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim’ (Gal. 2, 20)”. [16]
A santificação do padre torna-se assim uma exigência lógica do seu caráter sacramental e do seu ministério, como ela é uma consequência necessária do seu batismo. O Servo de Deus João Paulo II recordava-o, na sua Carta aos Sacerdotes da Quinta-Feira Santa de 1986: “O padre encontra sempre, e de maneira imutável, a fonte de sua identidade no Cristo Sacerdote. Não é o mundo quem determina seu estatuto segundo as necessidades ou as concepções dos papéis sociais. O padre é marcado com o selo do Sacerdócio de Cristo para participar da sua função de único Mediador e Redentor. (…) Ele é ordenado para agir em nome de Cristo Cabeça, para fazer entrar os homens na vida nova inaugurada pelo Cristo, para fazê-los participantes de seus mistérios – Palavra, perdão, Pão de vida – para reuni-los no seu Corpo, para ajudá-los a se formar interiormente, a viver e a agir segundo o desígnio salvador de Deus. Em resumo, nossa identidade de padres revela-se na ação “criativa” do amor pelas almas, que comunica o Cristo Jesus”. [17]
O culto eucarístico do Sacerdote, seja na celebração da Santa Missa, seja na maneira como ele demonstra seu amor e cuidado pelo Augusto Sacramento, torna-se dessa forma um elemento importante de evangelização e de formação dos fiéis. Se é verdade que o padre exerce a sua missão principal e se manifesta em toda a sua plenitude quando celebra a Eucaristia, [18] tal manifestação é humanamente completa quanto ele deixa transparecer a profundidade e a sacralidade deste Mistério, para que somente o Mistério Eucarístico resplandeça, através do seu ministério, nos corações e nas consciências dos fiéis.
A íntima relação entre consagração sacerdotal e Eucaristia supera amplamente, portanto, a visão estreita de uma eclesiologia sócio-cêntrica, que reduz o padre a um papel de ativista filantrópico ou de mero representante da comunidade. O Sacerdote, chamado por Deus, é pelo Senhor configurado a Ele mesmo. É Deus quem consagra o seu eleito, para convertê-lo em Cristo, para “cristificá-lo”, dedicá-lo exclusivamente ao seu serviço, como a Eucaristia é pão consagrado para converter-se em Cristo.
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